21 outubro 2021

MULHER ANÓNIMA...

Há poucos dias, estando eu a na F.Foz, fui dar um passeio a pé pela marginal entre Buracos e o Cabo Mondego. O dia estava calmo o sol brilhava e o vento estava ausente (o que ultimamente tem sido raro) contracenando com um mar sereno. Ao longo do percurso, sentei-me uma vez no muro de protecção da marginal para contemplar o mar, fitar o horizonte e reflectir um pouco na vida. Depois de algum tempo, continuei o percurso , e eis quando deparei com uma senhora já de uma certa idade que empurrava uma cadeira de rodas. Nele vinha sentado um homem que também aparentava a mesma idade da senhora.
Ao cruzarmos, e sem saber bem porquê, a senhora entendeu comigo dizendo: está um lindo dia! E eu respondi: é para admirar minha senhora, pois costuma estar muito vento. Pois, disse ela. Eu costumo aproveitar sempre estes dias bons para dar um passeio com o meu marido, pois já faço isto há muitos anos. Mas o que é que lhe aconteceu?  Olhe meu senhor a guerra deixou-o neste estado. Fiquei estático. Estava na presença de uma das muitas vítimas da Guerra Colonial. O homem, além de algo de grave nas pernas, sofria há muito tempo de Stress Pós Traumático.
Entrámos em diálogo e fiquei a saber que ele tinha estado na guerra em Moeda (Moçambique). A idade setenta e cinco anos.
Continuando a conversa, aquela mulher simples que empurrava  aquela cadeira já alguns anos com o seu marido como ocupante, me disse: A Associação dos Deficientes da tropa já fez muito pelo meu marido mas o estado não quer saber das mulheres dos que andaram na guerra pelos sacrifícios e sofrimento que têm passado ao cuidar deles. A minha vida nunca mais foi a mesma.
Esta mulher, viveu até aos dias de hoje a cuidar do seu marido deixando para trás a sua alegria mas mantendo o seu amor pelo seu marido. Esta é uma das muitas mulheres deste país que passaram ou passam pelo mesmo. É que estas situações passam muitas vezes para os filhos e netos. O tempo vai passando e vai chegar o dia em que já não haverá ninguém para contar esta parte da história na primeira pessoa.
Estas mulheres, ao longo dos tempos têm sido autênticas guerreiras. Muitas delas já foram substituídas  pelos filhos e netos. O Estado Português não podia e nem pode esquecer estas mulheres. Tem esquecido ao longo dos tempos aqueles e aquelas que por sua conta o serviram.

Claro que não vou transcrever todo o diálogo que tive com esta simples mulher. Também nem tão pouco lhe perguntei nome. Mas esta mulher não deseja a ninguém o que tem passado nestes últimos anos, pois para aqueles que ainda são vivos a guerra ainda não acabou. Como tem sido possível ao longo dos anos os nossos governantes nada terem feito por estas mulheres? Não só por estas mulheres mas como também por todas as outras mulheres deste país que não sendo pelos efeitos da Guerra  são pelos motivos mais variados da vida.
Quanto ao marido desta mulher, não disse qualquer palavra a não ser levantar uma das mãos como se fosse um dizer adeus. Alguns dizem: a guerra já lá vai há mais de cinquenta anos! Mas o tempo não a vai deixar apagar enquanto houver um combatente e um deficiente vivo.  Estamos todos a chegar ao fim das nossas vidas. Que o Estado Português nos consiga dar um fim de vida digno mesmo contra tudo e contra todos. Isto que não se estenda a nós que andamos na guerra mas a todo o cidadão civil que passa pelo mesmo.

Não vou dizer mais nada.
Um abraço
SANTA

1 comentário:

  1. Caro Santa..só hoje tive oportunidade de abrir o nosso blog e deparei com este excelente texto que sinceramente me comoveu. Apesar de sabermos bem como muitos dos nossos camaradas e familias,ao longo de meio seculo, têm sido tratadas com tamanha desfaçatez e descrédito, continuo a ter grandes dificuldades em entender e aceitar tanto desprezo pela vida humana.
    Por isso, há que continuar a denunciar estes dramas humanos que, infelizmente, só a nós incomodam.
    Nunca será demais, nestas alturas, deixarmos, também, uma palavra de apreço a todas as mulheres que já passaram ou continuam ainda sósinhas o seu calvário de cruz tão pesada. Essas sim, são verdadeiras heroínas.
    Imagino bem o teu estado de alma quando te deparaste com esta situação que tão sentidamente descreveste.
    Por fim.... continuar a dizer aqueles que assobiam para o lado.... Tenham vergonha!

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