A guerra afectou toda a sociedade.
O sofrimento começava logo no cais da Rocha. Era o sofrimento dos muitos que partiam e o sofrimento daqueles que ficavam. Eram os pais, esposas, noivas, namoradas ...
Chegados ao destino, os meios muitas vezes eram fracos. As frentes de guerra causavam muitos mortos e feridos. Dos mortos, aqueles que as suas famílias podiam pagar, vinham para a Metrópole, os outros eram enterrados nos locais de combate e em cemitérios improvisados (ou não) onde ficaram esquecidos para sempre. Hoje existem centenas de camaradas nossos que ainda lá se encontram à espera que alguém (o Estado) tenha vergonha e os vá buscar e entregar às suas famílias.
Duas fotos, cedidas por camaradas, demonstram bem onde foram enterrados companheiros nossos e em que estado se encontram as sepulturas. Completamente esquecidas e ao abandono. Que os nossos governantes tenham vergonha de abandonar aqueles que na altura deram a vida em defesa da Pátria. Na altura era assim, as províncias ultramarinas (diziam eles), também eram a nossa Pátria!
Os feridos acumulavam-se nos hospitais militares, que muitas vezes não tinham condições para receber tantos. Sendo assim, aumentava o número dos que iriam ficar deficientes para toda a vida. Na altura, eram tratados por “inválidos”!
Eu estive internado algum tempo, no H. Militar de V. Cabral. Na altura estava cheio (1969). Lembro-me bem: um dia (já era noite), eu e outros tivemos de deixar as nossas camas e ir dormir no chão, porque iam dar entrada cerca de vinte feridos graves (e também com eles vieram três mortos). Vinham da zona de Luatize e Muatize. Não me quero lembrar da confusão que foi, aquilo que vi foi para esquecer. Uns gritavam, outros choravam e pediam ajuda, não dá para descrever o que naquele momento se estava a passar. Enfim!
NORATLAS (Imagem da Net) |
Passado pouco tempo, recebi a notícia que tinha que ser evacuado para Nampula. Saí do hospital para fazer uma curta viagem até ao aeroporto de V. Cabral e embarcar no “Barriga de Jindungue” que era o nome que a malta dava ao avião militar “Noratlas”.
Interior do NORATLAS (da Net) |
Os que podiam, iam sentados nos bancos laterais (de lona), os feridos mais complicados, vinham no chão deitados em macas. Era qualquer coisa digna de um filme. Para apimentar mais a coisa, a meio do caminho aconteceu uma avaria no avião, o mecânico em ar de brincadeira espreitou por uma das janelas da cabine e disse: Não tenham medo que este avião é o mais seguro do mundo! Realmente nada sucedeu. Fizemos uma aterragem um bocado esquisita, mas só!
Chegado ao Hospital de Nampula, levaram-me para o quarto onde fiquei sozinho durante algum tempo entregue a mim mesmo (aqui senti a solidão) chorando algumas vezes, pois nem correio recebia. Estive algum tempo sem me verem até que alguém se lembrou que eu estava ali. Praticamente, nos meses que lá estive pouco me fizeram ou nada. Por fim, chegou o dia em que me disseram que tinha que ser evacuado para o Hospital de L. Marques. Mais uma viagem no “ Barriga de Jindungue”. Chegado a L. Marques, (já muito perto da meia noite) fui muito bem recebido. Passado alguns dias, tive a oportunidade de visitar algumas enfermarias. Deparei-me com um cenário nada agradável: Camaradas cegos, sem braços, sem pernas, queimados, e outros. Era o espelho da guerra que eu estava a ter. EU, PARECENDO JÁ ESTAR A ADVINHAR, DIZIA PARA COMIGO MESMO: SE ELES SOBREVIVEREM O QUE VAI SER DELES?
Passado alguns meses, fui novamente evacuado, agora para Lisboa. Desta vez, não vim de avião mas sim de barco (no Paquete Angola). Chegado a Lisboa, fui depositado nos “Galinheiros” em Campolide, que era o anexo do Hospital Militar principal. Aqui, os quartos para onde fui, tinham de lotação, se não me engano, de quatro camas. O pior era a mistura que havia. Eu, que estava com problemas ortopédicos e na cabeça, estava com camaradas muito piores que eu, que além de darem maus dias, davam também más noites causando traumas psicológicos.
Eu (Santa), no HMLM |
Claro, além destes hospitais, haviam os improvisados em pleno cenário de guerra onde os horrores eram impressionantes e os enfermeiros sem condições faziam autênticos milagres. Ninguém sabe o sofrimento que era ver um camarada mutilado ou a morrer. Só quem passou por isso. Muito mais havia a dizer, mas fico por aqui.
Não querendo entrar em mais pormenores, só quero dizer uma vez mais que os nossos governantes parecem não reconhecer, ainda hoje, quem se sacrificou na guerra (já de si injusta). Existem países que têm reconhecimento pelos seus combatentes. Em Portugal fomos e somos esquecidos. Na maior parte das escolas, quase tudo é ignorado. Até no dia 10 de Junho éramos ignorados, só passados 36 anos, fomos lembrados em Faro! Há que pensar muita coisa, pensar como os combatentes foram e são tratados. O Estado continua a não ligar, o tempo já é curto, pois já estamos quase no fim das nossas vidas.
Como sempre, para todos, um abraço do Santa
A revolução de 25 de Abril ofereceu-nos, além da ansiada liberdade, o fim daquela estupida guerra. Os nossos filhos, como bens preciosos, foram poupados à continuação da barbárie. E,só por isso, a nação tornou-se mais feliz e mais digna aos olhos do mundo.
ResponderEliminarA.Castro