14 junho 2011

APOCALYPSE NOW

Nós também tivemos o nosso "Apocalypse Now", infelizmente. É nome dum grandíssimo filme, que me deixou marcas, realizado em 1979 pelo genial Francis Ford Coppola e protagonizado pelo famoso Marlon Brando, entre outros.  Põe em evidência toda a crueza da guerra do Vietname e o enorme sofrimento passado por aquela geração americana que, como a nossa, foi castigada sem saber porquê.
Vem isto  a propósito da obra-prima aqui deixada há dias, como sempre  pelo amigo Soares  através do video "A guerra ao vivo", pois veio-me de imediato à memória todo aquele pesadelo que vivemos. Parece que ainda ouço o roncar do motor do avião que, a pedido do Moreira a partir do rádio, veio à zona, e em voos rasantes de cá para lá, meter medo ao IN.  Passado tanto tempo é caso para perguntar: Que foi ele lá fazer sabendo de antemão que os chamados "turras", após os primeiros tiros de surpresa que normalmente direcionavam para a frente e  fim das  colunas militares em deslocação, davam rapidamente às de vila-diogo escondidos pela vegetação da mata?  Mas dessa arte de guerrear diziam perceber os corajosos generais do QG!?
Lembro também do tac-tac-tac característico do héli por cima das nossas cabeças que, infelizmente, foi obrigado a trabalhar mais cedo pois tinha que evacuar o falecido cabo Rodrigues mais os cinco feridos, alguns graves, resultado daquela maldita emboscada.
Talvez em homenagem sentida a eles, o Soares pede à malta que aqui os recorde.  
Normalmente, e contrariamente às normas militares,  as da caserna  relativamente aos deveres e obrigações que tão bem conhecemos, eu infrinjo-as dando o passo em frente que nunca se dá.  A todos peço desculpa por isso e, desta vez, ofereço-me com todo o gosto, assim lhes prestando  humilde homenagem. 
Então, com alguns desculpáveis lapsos de memória, foi assim:
Saímos de Vila Cabral com destino a Tenente Valadim (Mavago) e, segundo os meus apontamentos,  pernoitamos no aquartelamento de Nova Viseu (hoje chamada Mtelela) em 10 de Outubro de 1969.  Lá chegados dei de caras com o Zé (já não recordo o apelido) um dos operadores cripto mais malandros  que conheci na Trafaria, local da especialidade.  Claro, nascido em Lisboa na maternidade Alfredo da Costa, tinha que ser!
Foi uma noite em claro, nem pensar em dormir, o Zé com o maior entusiasmo mostrava-me, naquele tugúrio a que chamava centro cripto, três lindas peles de chita (felino algo parecido com o leopardo) esticadas e penduradas do tecto, que dizia serem troféus de caça nocturna que fazia com outros camaradas metido em cima dum jeep até uma distância de meia dúzia de kilometros, aproveitando a abundância da espécie  naquela zona.  E, como as balas eram de borla, valia bem a pena, digo agora eu!
Mas curioso é ter-lhe perguntado: Ó Zé, e para onde vais caçar não há "turras"? Nem minas?
Resposta pronta: É pá, aqui não há guerra, andou praí a engenharia e daqui em diante vais apanhar só alcatrão durante 10 km.
Pela madrugada adentro com muitos cigarros, fumo e cerveja ainda houve tempo para o Zé me dar uns palpites sobre a forma de me inserir na difícil arte do comércio de material porno.   E foi a partir daí que passei a contribuir para a felicidade de muita malta da 2415!  O meu correio passou a ficar mais pesado pois,  além das habituais cartas/aerogramas da família, provenientes de Lourenço Marques e graças ao amigo Zé, chegavam-me as famosas coleções  de fotos algo arrojadas para a época.  E acreditem tinham todas destino e o negócio até foi bastante rentável!
Como a guerra não podia parar, a coluna saiu de Nova Viseu no dia  seguinte  por volta das 7 h da manhã  rumo a Tenente Valadim.
À despedida o Zé ainda me disse, enquanto me sentava no unimog em cima da divisória entre o condutor e o lugar do acompanhante, desta vez  já de G3 nas mãos:  Ó pá vai à vontade por aqui não há porrada!
Lembro-me que a coluna era composta por várias berliets e unimogs.  Eu ia no último unimog, precisamente aquele que ninguém deve escolher (como eu era esperto!). Quando surgia uma recta dava para ver a berliet que ia na frente carregada de colchões até uma altura incrível onde a malta ia deitada descontraidamente.
E,  após alguns km,  tendo já terminado a zona alcatroada, eram para aí 8 h da manhã, repentinamente  começamos a ouvir "fogachada" sem parar, vinda da mata.  Toda a gente se atirou para a berma mais próxima disparando para o lado que estava virado. Foi o habitual barulho ensurdecedor  a gastar carregadores a todo o comprimento da coluna. 
A mim o medo tomou-me de assalto e não me deixou raciocinar e, por isso, em vez de despachar o carregador da  G3 por cima da cabeça (técnica apurada), como normalmente se fazia, entrei de peito  aberto  em corrida  louca pelo mato adentro rumo a destino incerto!  Só parei porque uma voz, em altos berros, vinda de trás, de quem sabia o que estava a fazer, dizia: Ó cripto, ó cripto, pára, pára, és doido, anda pra trás!   
Essa voz discernida era do nosso cozinheiro Sousa.  Daqui lhe digo: Ó Sousa, se nunca te agradeci, faço-o agora: Muito obrigado, a partir deste momento passas a ser o meu herói preferido!  Até te vou homenagear pela 2ª vez exibindo-te ao mundo inteiro  no exercício da tua nobre função de cozinheiro, com um molho de "spagueti" na mão!

       Muito obrigado Sousa. Que a saúde nunca te falte!

Aproximamo-nos da frente da coluna onde se iniciou e concentrou toda a "fogachada" e a confusão era enorme: gritos, gemidos, vozes alteradas, o costume, sem ninguém perceber aquela realidade dum companheiro acabado de morrer e dos outros feridos que não eram assim tão poucos.
Um desses, já não sei quem era, estava na berma da picada à sombra das árvores, gemendo de meter dó devido a um tiro no ombro direito e, quando me abeirei dele, tinha a camisa do camuflado encharcada em sangue. As muitas moscas não o largavam.  Tive de tirar aquela rede (não sei o nome) que usávamos à volta do pescoço  por causa do frio e do pó, acho eu, e cobri-lo de modo a afugentar as nojentas.
E, com o inesgotável "amor à pátria" de cada um de nós, lá chegámos a Tenente Valadim!   Mas não sãos e salvos como é hábito dizer-se quando se vive em paz!
O resto daquele "teatro de operações"  foi agora extraordináriamente contado  ao vivo, ao natural e com todas as cores no excelente vídeo colocado pelo Soares que mais parece um filme de acção,  como se não tivessem já passado 42 anos.

     
Interior da capela de Tenente Valadim. (Foto de Nov.1969).
Diz o meu amigo José Lopes Dias, que  vez em quando lá vai fiscalizar algumas plantações, já não existir.

2 comentários:

  1. Amigo e camarada Artur. Acabo de ler o teu texto,impressionou-me bastante.São destas histórias (verdadeiras) que se fazem os homens.
    São estas coisas que se devem contar para que se faça história sobre a guerra,pena é que tantos camaradas nossos que prometeram contar as suas, ainda não o tenham feito, serão sempre uma homenagem a todos nós.
    Um abraço. Santa.

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  2. Ao reler de novo este "Apocalipse now" e rever as imagens do vídeo sinto-me cada vez mais arrepiado. Custa acreditar que fiz parte desta historia e deste filme baseado em factos veridicos?!

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